Final Fantasy e a evolução do ATB
Os últimos três anos têm sido generosos para a Nintendo no que toca ao apoio de produtoras e editoras externas. Um dos parceiros que se chegou à frente logo de início com uma nova série foi a Square Enix com o lançamento exclusivo de Octopath Traveler e as enchentes de versões do catálogo da série Final Fantasy.
A Nintendo e a Square Enix (anteriormente conhecida apenas como Squaresoft) tiveram uma relação bastante produtiva no que diz respeito a JRPGs nas consolas domésticas nas décadas de 1980 e 1990. Hoje muitos de nós vemos com bastante apreço os clássicos que resultaram dessa parceria. São memoráveis, sobretudo, os clássicos Final Fantasy que me marcaram a infância, primeiro na PlayStation; mais tarde descobrindo todo o catálogo da Super Nintendo e NES. Atualmente o meu predileto continua a ser Final Fantasy VI, o culminar da experiência de anos a produzir muito do melhor conteúdo a 2D na consola de 16-bit antes do “boom” tecnológico de 1994, com o lançamento de consolas capazes de renderizar modelos tridimensionais em tempo real.
“Final Fantasy IV introduziu uma variante de combate por turnos em tempo real, uma fórmula híbrida”
Final Fantasy não é uma série que se mantenha presa às origens e agarrada ao que funciona. Aliás, muito do credo atual da Square Enix é que a série principal é um catalisador para a inovação dentro do género, o que leva a que a fórmula esteja sempre a ser renovada e reinventada em busca de algo novo a cada experiência. Se é verdade que hoje é assim que a Square Enix trata Final Fantasy, é inegável que durante anos a série manteve-se bastante semelhante em muitos aspetos. O mais promeminente de todos até Final Fantasy XII era conhecido como “Active Time Battle” (ATB), uma das características mais conhecidas da série.
O sistema ATB foi inicialmente implementado em Final Fantasy IV, o primeiro da série principal na Super Nintendo. Um jogo de muitas estreias para a série, nomeadamente o início do que eventualmente se tornariam as suas raízes mais fundas em termos de narrativa e mecânicas por muitos anos. Foi também o único Final Fantasy a utilizar um total de cinco membros do grupo em simultâneo nos combates, algo que nunca mais foi posto em prática, talvez por questões de equilíbrio de dificuldade.
Final Fantasy IV introduziu uma variante de combate por turnos em “tempo real”, uma fórmula híbrida que conseguiu juntar com sucesso o combate por turnos dos seus predecessores a ações tomadas no momento em que as personagens estavam prontas. Dependendo da rapidez de cada personagem, teriam oportunidades de atacar mais vezes enquanto personagens que utilizavam magia teriam de se concentrar durante uns instantes antes de lançar o seu feitiço. Esta nova vertente também se aplicava ao adversário, tornando o combate mais dinâmico e tático, abrindo também portas a um tipo variado de feitiços que pudessem tirar proveito deste novo sistema.
Com o passar dos anos e com o sucesso e aceitação do sistema ATB, que seria implementado nos jogos que se seguiram ao quarto capítulo, cada jogo novo trouxe algumas melhorias e adições à fórmula. Final Fantasy V recuperou o “job system” de Final Fantasy III, adicionando-lhe uma série de atributos passivos e habilidades únicas para cada classe, o que fez a escolha da combinação a levar para combate ainda mais importante. Final Fantasy VI preteriu este sistema a favor de mais personagens com habilidades únicas, bem como formas diferentes de entrar em combate e de ser emboscado por inimigos. Final Fantasy VII, o mais popular da série, foi o primeiro a adicionar os famosos “Limit Break”, ataques especiais únicos para cada personagem que servem de trunfo em batalhas mais complicadas. Final Fantasy VIII começou a desviar-se da norma ao introduzir um sistema de magia algo controverso que permitia roubar magias dos inimigos para uso próprio, bem como juntar essas magias para benefício dos atributos em combate com o “Junction System”, além de acelerar bastante o ritmo do combate ao diminuir significativamente o tempo de espera imposto pelo sistema ATB. Final Fantasy IX volta um pouco atrás e acaba por juntar um pouco de tudo, com a desvantagem de ser muito mais lento que os anteriores, tanto em tempo para agir como nas animações, embora estas sejam fantásticas.
Cada capítulo novo trouxe algo que consolidou o ATB como o sistema de combate de referência da série Final Fantasy. Depois de se distinguir durante muitos anos com esta fórmula, de repente voltámos um pouco mais atrás com a chegada da sexta geração de consolas, e com elas Final Fantasy X na PlayStation 2 em 2001. O décimo capítulo decidiu abandonar o sistema ATB em favor de um estilo por turnos mais convencional, mantendo a mesma estratégia dos jogos anteriores mas sem tempos de espera para atuar ou mesmo de ter de atuar sob pressão. Pessoalmente, e embora esta abordagem não me cause problemas, sinto que se perdeu algo nesta transição entre gerações. Foi então que a Square Enix, como se tivesse ouvido o público, decidiu voltar a pegar no sistema ATB, desta vez por ocasião de algo que nunca antes tinha sido feito: uma sequela direta a um jogo “numerado”.
Final Fantasy X-2, possivelmente o título mais polémico da série até à data, ousou ser diferente em muitos aspetos: progressão por capítulos, um ambiente muito mais jovial e simples, mexeu numa história que não precisava de ter continuação, entre muitos outros pequenos problemas. Mas no meio de todo este sacrilégio, Final Fantasy X-2 trouxe ao mundo aquela que foi a melhor implementação do sistema ATB feita até então e que até hoje não tem par entre jogos com fórmulas semelhantes.
O sistema presente em X-2 é essencialmente o mesmo, pegando um pouco no que foi feito em cada jogo para construir a sua base inicial. O principal encontra-se intacto: um compasso de espera até podermos escolher a ação a executar. O “Job System” semelhante ao de Final Fantasy V, incluído para maior variedade tática, bem como padrões diferentes para rodear (ou ser rodeado por) inimigos como em Final Fantasy VI, e ainda um sistema de aprendizagem de novas habilidades semelhante ao de Final Fantasy IX.
A partir desta base, Final Fantasy X-2 melhora todos aqueles aspetos e constrói um sistema de combate extremamente apurado e de uma execução magnífica. Os ataques mágicos não obrigam o jogador a passar por momentos de espera até poder atacar outra vez, tendo direito ao seu próprio tempo de recuperação enquanto o jogador pode executar outra ação durante o tempo de espera para usar outro ataque mágico, o que corta significativamente o tempo de espera. Cada classe tem também tamanhos diferentes da barra de ATB, o que torna algumas personagens muito mais rápidas a executar comandos que outras.
Mas possivelmente a alteração mais significativa de X-2 é o próprio “Job System”: o chamado “Dresspheres” de X-2 permite mudar de classe a meio do combate, o que abre a porta a todo um mundo de possibilidades e incentiva ativamente a troca frequente durante o combate.
“Final Fantasy X-2 melhora todos aqueles aspetos e constrói um sistema de combate extremamente apurado e de uma execução magnífica”
Cada personagem tem de ter equipada uma “Garment Grid”, algo semelhante a uma grelha e que funciona como o guarda-roupa de cada personagem. Cada grelha tem um conjunto de condições e atributos que podem ser ativados ao trocar de “Dressphere”, ativando a ligação entre cada classe. Existem grelhas que permitem aceder a imensas “Dresspheres” e são bastante versáteis mas as grelhas que permitem aceder a demasiadas classes diferentes acabam por ser contra-produtivas por uma razão simples: as “Special Dresspheres”, onde entra, por exemplo, a junção da habilidade “Summon” com “Limit Break”. As “Special Dresspheres” só podem ser acionadas com a grelha totalmente ativada. Isto significa que é preciso mudar de classe entre todos os módulos da grelha para poder (finalmente) ativar as “Special Dresspheres”. Estas “Dresspheres” são poderosas e têm habilidades únicas por cada personagem, mas têm a desvantagem de temporariamente retirar as outras duas personagens de combate.
O potencial gigantesco de variedade proporcionado pelas “Dresspheres” é algo que os jogos seguintes não souberam aproveitar. Abandonando o sistema ATB, perdeu-se muita da magia que Final Fantasy tinha em combate. E olhando para Final Fantasy X-2, percebo também que o sistema foi abandonado não apenas para implementar um combate em tempo real mas também porque (talvez) já não se encontrassem ideias novas. É realmente uma pena ver a melhor implementação deste sistema de combate presa no que é possivelmente o jogo com o enredo mais fraco, ainda para mais uma sequela direta de um jogo que não precisava disso. Fico com uma certa desilusão por nunca mais terem pegado naquela fórmula.
Felizmente a Square Enix não abandonou completamente os sistemas por turnos, e até implementou algo semelhante a um ATB no “remake” de Final Fantasy VII, mas infelizmente o resultado não é o mesmo. Fica ainda a saudade no ar ao ver jogos como Bravely Default II e Octopath Traveler a singrar com sistemas por turnos, mas o que realmente eu gostaria de ver era um renascimento do ATB num jogo com uma história mais interessante, para que não fique esquecido ou associado a um jogo menos bem lembrado.
O chicote que mantém a máquina a funcionar. Entusiasta pela indústria e com um gosto variado, mas com um especial amor por JRPG, nunca deixa escapar uma boa promoção e por consequência tem uma coleção maior do que alguma vez poderá ter tempo para a terminar.
Faltou a menção a Chrono Trigger :p