Nintendo Switch 2: Quando o preço já não é necessidade, é estratégia
Quando olhamos em retrospetiva para a indústria dos videojogos há momentos que conseguimos identificar nitidamente como um ponto de viragem. Talvez ainda seja cedo para afirmá-lo taxativamente, mas acredito que este seja um ponto sem retorno na relação da Nintendo com uma grande parte do seu público-alvo, e aqui é impossível não mencionar a questão do preço, sobretudo dos jogos, que agora atingem (sem precedentes) a marca dos 79,99€ fixos e em alguns casos, quase uma centena de euros na sua versão física. Isto chocou fãs, não fãs, a comunidade de videojogos e até quem ouvia de longe o tumulto que se gerou nas redes sociais. Ao longo dos dias assistimos a várias reações que se tornaram um coro de contestação deste novo preçário que irá marcar a vida útil da Nintendo Switch 2 no mercado.
Por um lado, não faltaram analistas do setor financeiro a corroborar a visão da Nintendo e antevendo ganhos aliciantes (mesmo que os custos de produção aumentem ligeiramente, não crescem na mesma proporção que o preço de venda ao público), trazendo inevitavelmente margens de lucros expansivas e ganhos de dividendos acrescidos. É aqui que se encontram os maiores ganhos com o aumento de preços. As gerações de consolas com destaque para as últimas ensinaram-nos que um incremento substancial de preços pouco ou nada altera o comportamento dos consumidores e as vendas a longo prazo. Por muito que o público mantenha ou perca poder de compra com a inflação, neste mercado o dinheiro aparece sempre, seja por mais endividamento ou por sacrifícios que se fazem.

Como referido, por muito que se argumente que o aumento do custo de produção justifica preços mais elevados, a Nintendo acaba por ser um caso à parte: os orçamentos conhecidos do público estão longe de alcançar os patamares megalómanos de muitas produções AAA e “first-party” da concorrência, embora se encontrem exceções. A Nintendo sempre trabalhou dentro de orçamentos relativamente contidos, até porque o “hardware” não permitiria mais. Isto trouxe-lhe uma vantagem competitiva, a Nintendo trabalha com custos de desenvolvimento baixos e receitas bastante altas, pelo que o argumento da subida dos custos tem pouca aplicação neste caso. Há ainda o argumento macroeconómico das tarifas aduaneiras impostas pelos Estados Unidos, anunciadas logo após o Nintendo Direct. Embora possamos no limite considerar uma ótima capacidade de antecipação por parte da Nintendo, a verdade é que já foi avançado um possível aumento do preço, sobretudo da consola. Isto é, o preço do “hardware” não refletiu uma estratégia preventiva por parte da Nintendo, mesmo com a deslocação da produção para o Vietname. Indo ao fundo da questão, a Nintendo decidiu unilateralmente aplicar um encarecimento dos preços porque quer e pode.
Por muito frustrante e até revoltante que possa ser para os fãs que querem continuar a apoiar a sua estimada marca, a verdade é que como já vimos muitas vezes, estes acabarão sempre por comprar, com todos os sacrifícios nas contas ao final do mês que isso possa acarretar. Ninguém nas relações públicas irá admitir um discurso tão direto, escudando-se sempre com argumentos exteriores como a inflação ou a guerra comercial, mas foi uma decisão com base na exploração de uma procura inelástica: os consumidores continuam a comprar porque não têm alternativa (querem jogar o novo Mario Kart World) e porque veem de alguma maneira naquele(s) produto(s) uma necessidade não negociável. E mais do que ninguém, a Nintendo sabe disse e aproveita-se desta realidade favorável, num público que se torna cada vez mais “premium”. Quando olhamos para outro mercado, o dos dispositivos móveis, há alguns anos uma marca de destaque lançava um produto com um preço acima dos mil euros e conseguiu a proeza de não só manter como multiplicar as vendas quando existiam outras opções a metade do preço que eram tão ou mais poderosas em desempenho e noutros aspetos. É um sintoma de consumismo desmedido que vai além da Nintendo. Neste caso ainda tem a mais-valia da exclusividade numa mão cheia de jogos que compõem o seu catálogo, como as séries Pokémon ou Kirby. Os rendimentos podem não crescer na mesma proporção que o custo de vida médio, mas o favoritismo não abranda e a propensão para o consumo falará sempre mais alto para muitos, quer comprem no lançamento, quer na época festiva.

Depois desta parte mais maçante, queria olhar para o passado e buscar alguns casos exemplificativos que ajudarão a mostrar contrastes nas lideranças da Nintendo e que nos podem esclarecer sobre as opções da marca. Voltemos ao início de 2011, no lançamento da 3DS, quando os “smartphones” começavam a ocupar um lugar crescente no dia-a-dia. Chega uma consola, sucessora do êxito da DS, que prometia ser uma inovação em “gimmicks”e sobretudo no potencial de experiências que poderiam ser vividas em qualquer lado, agora com efeito 3D. Foi um lançamento duro e contra as expectativas mais otimistas, que além da concorrência direta dos dispositivos móveis começava a mexer com as opções de acessibilidade dos consumidores, juntando-se o fraco alinhamento de jogos no lançamento com um preço pouco convidativo. A 3DS podia ter sido logo à partida um insucesso enorme. Sabe-se hoje que a Nintendo se mexeu, respondeu aos sinais do mercado e ainda nesse ano, decide reduzir o preço da consola (acontecimento histórico), e ofereceu aos primeiros compradores jogos retro através da saudosa Virtual Console.
A mudança não foi só externa, jogada rápida de “marketing” para reconquistar a fé dos fãs e dos investidores, mas também e sobretudo interna. A Nintendo, regida por uma cultura empresarial japonesa, tradicional e coletivista, fez cortes significativos no quadro de pessoal sénior e reorientou o planeamento interno para agradar ao seu público fiel. A 3DS tornou-se um dos maiores sucessos da empresa em receitas, mas também ao nível de experiências de jogos como The Legend of Zelda: Link Between Worlds ou Fire Emblem Awakening. Mais tarde, a Wii U viria a ser outro caso de estudo de insucesso, mas por motivos diferentes. Aqui inclui-se a incapacidade de comunicação do “marketing” em transmitir e vincular o conceito da consola ao público em geral e a confusão face à Wii, que muitos achavam ser ainda a consola base e o “gamepad” da Wii U um acessório, entre outros problemas que se podiam apontar.

Aqui não interessa tanto perceber o porquê, mas antes a reação da empresa. A Nintendo focou todas as energias em criar experiências memoráveis, nunca perdendo a missão e valores pelo caminho. Lembro-me bem dos “bundles”generosos colocados à venda, da vontade de crer e fazer, e da imaginação que era colocada nos sucessivos Nintendo Direct entre 2014 e 2016. Quem não se lembra dos Nintendo Selects, com boa parte dos grandes jogos da consola a um preço acessível? Lá nos bastidores, e talvez só reconhecível pelos maiores fãs, estava Satoru Iwata. Com um estilo de liderança pautado pela humildade e transparência, pelo romper da hierarquia funcional entre quem está na linha operacional (as equipas de produção) e a gestão intermédia, algo que até para a cultura empresarial moderna ocidental é demasiado ambicioso. Além disso, Iwata preocupava-se com a experiência do consumidor final, e via-se a si próprio como um jogador antes de qualquer título hierárquico.
Iwata esteve por trás das maiores conquistas da Nintendo, da DS à Wii, mas também soube chegar-se à frente em momentos mais baixos pedindo desculpas publicamente nos casos da 3DS e da Wii U. Esta visão no papel e em pessoa marcou bastante a imagem da Nintendo durante quase quinze anos até ao seu falecimento. Iwata chegou a supervisionar o que viria a ser a Nintendo Switch, mesmo que não tenha chegado a ver o sonho materializar-se, consola com uma visão artística e inventiva. Com a passagem de serviço de um executivo com um pé na criação artística para o novo presidente Shuntaro Furukawa, executivo “corporate” puro e duro ainda em exercício, vemos uma diferença clara de liderança e de imagem projetada. A Nintendo Switch 2 é a primeira consola pós-Iwata e a primeira que segue a linha direta da visão de Furukawa. O ADN da Nintendo sempre foi marcado pela inovação e criatividade, mas o que nos espera na nova consola? Um dispositivode continuidade com um ou outro “gimmick” menor, mostrando-se ao mundo mais pelo seu poder de desempenho face à antecessora do que pela criatividade fora da caixa que associamos à Nintendo.

Em períodos de grande liquidez a Nintendo nunca esquecia o seu “core business” e surpreendia o mundo com mais um conceito revolucionário, mesmo que houvesse um grande risco associado, em alguns casos até justificados. Agora e depois do sucesso estrondoso da Nintendo Switch (terceira consola mais vendida na história desta indústria), Furukawa decide jogar pelo mínimo denominador, numa inversão completa de valores e aversão ao risco, encarecendo o preço dos seus produtos; colocando de parte a inovação no “hardware”; cobrando por uma “tech-demo” que outrora ter-se-ia oferecido em conjunto com a consola (recordemos a Wii e o Game Boy); e acima de tudo, não sendo transparente nem frontal, contrariamente ao seu antecessor. Foi preciso a transmissão do Nintendo Direct terminar para o público descobrir (com espanto) os preços dos jogos, algo que dificilmente aconteceria sob a liderança de Iwata.
Esta e outras decisões conhecidas ao longo dos dias desde a transmissão, como as nuances dos “keycards” ou até dos jogos originalmente lançados na Nintendo Switch que ganham novas versões para a sucessora, mostram como a Nintendo se desviou do olhar dos fãs mais atentos. É como se de repente o mantra que a Nintendo construiu se revelasse como o que sempre foi: uma estratégia empresarial. O público, e aqui falo dos seus consumidores habituais e fãs, parece ter acordado deste longo sono e da forma mais brusca possível. Escusado será mencionar o óbvio: a Nintendo atua num mercado de produtos quase de luxo, isto é, não essenciais (vendo o rácio entre preços praticados e os salários reais em muitos países desenvolvidos como o nosso), todas as considerações éticas que se poderiam apontar caem por terra. Afinal, não são bens de primeira ou segunda necessidade.

Quem mesmo com a carteira apertada sente uma necessidade irresistível de jogar os novos jogos da Nintendo Switch 2 recorre desesperadamente a um boicote vazio nas redes sociais, na tentativa que o seu grito de protesto faça mossa. Mas sendo a Nintendo uma empresa japonesa inserida num mercado altamente protecionista e com um foco prioritário para o consumo interno (não esquecer a versão mais barata da nova consola somente ao alcance dos residentes no Japão), não poderia estar mais indiferente ao que se passa nas redes sociais do outro lado do mundo. Como já vimos, o passado mostrou que em qualquer empresa neste sistema económico, a única forma de protesto eficaz é realizada com a carteira. Somente uma derrapagem nas receitas poderia levar a um ajustamento da estratégia praticada e à tão desejada redução do preço.
A Nintendo que sempre viu nos seus fãs, amplamente fiéis, um dos seus ativos mais fortes pode muito bem tê-los alienado e com isso perdido também um aliado natural nesta nova geração de consolas. Só o tempo o dirá. Só os anos mostrarão o quão a liderança de Furukawa resistirá ao choque de visões face ao seu antecessor. Somando a isto, o envelhecimento e consequente saída de criativos conceituados que conhecemos dos cargos sénior da empresa, sem a devida reposição e retenção de talento, pode resultar numa falta de inovação nas suas experiências e produtos, e que é a sua imagem de marca. A Nintendo continua também a expandir o seu portefólio de investimentos através da diversificação das fontes de receitas como é o caso dos parques de diversões e das produções cinematográficas.
Este texto não foi somente uma tentativa de racionalizar opções de uma marca que se apresenta a todas as pessoas, famílias e crianças, mas que se distancia da realidade da maioria dos indivíduos. É também de um fã, que a seu jeito tenta colocar algumas notas mentais no papel, quanto ao que avizinha ser um futuro distante e pouco acessível a muitos. Em jeito de conclusão, acredito que a Nintendo Switch 2 irá, mesmo contra todas as expectativas, superar previsões, bater recordes de vendas e continuar o desempenho financeiro exímio da sua predecessora, deixando infelizmente uma fatia mais do que considerável de fãs, amantes e casuais para trás no processo. Resta saber até que ponto o público da Nintendo aceitará pagar mais, não por necessidade da empresa, mas por escolha deliberada.

Entusiasta do mundo da Big N desde os tempos da Wii. Incontornável fã das plataformas de Mario à imersão de Metroid, da aventura de Zelda à estrategia de Pikmin, dispensando apenas a tranquilidade de Animal Crossing.